RACISMO
Após presenciar uma situação em um dos muitos grupos de WhatsApp, única forma de aglomeração permitida na atualidade, resolvi escrever essas poucas linhas sobre o evento.
No vídeo, onde muitas pessoas gritavam de forma eloquente quase como um coral, ouvia-se as expressões: “mata!, Mata!, atira”, acerta a cabeça dele!, Vagabundo!, atira por trás!, derruba no tiro!”. Na imagem, via-se um jovem aparentemente descontrolado e mantendo uma senhora refém enquanto tenta subtrair a bolsa da mesma e esconder dos policiais que o cercavam.
Páaahhhhhhhhhh! Acertou o jovem! Matou! Morreu! Aplausos e gritos ressoaram como em uma final de campeonato quando seu time é campeão! Eram os civis vibrando a morte de mais um “bandido, vagabundo, que amanheceu sem ter nada pra fazer, foi roubar e teve seu CPF cancelado com sucesso”, como relatava um dos comentários descrito a baixo do vídeo no grupo de WhatsApp, que rapidamente ganhou figurinhas que sinalizavam concordar com a fala do integrante.
Longe de julgar as atitudes envolvidas no vídeo quanto das que ressoaram no grupo, peguei a refletir nos números assustadores de pessoas que são mortas diariamente e que passam a fazer parte de uma fria estatística que servem para quantificar “o poder e a exuberância do Estado na limpeza da sociedade”.
O evento fez emergir em mim uma reflexão que perpassou algumas situações, produtos, setores, faces e fases da civilização, como o racismo, a economia, a política, a objetividade e a subjetividade, todas a meu ver, sendo resultado de uma construção histórica, bem como, suas importâncias e valores. Reflexão que hoje classifico como importante e necessária para o debate da atual conjuntura e para nos embasar para o desenvolvimento de nossas atividades profissionais, relações familiares, pessoais, com a sociedade e ainda como subsídio das nossas decisões e escolhas
Neste momento, usando como fundamentação o próprio conhecimento e subsidiado por argumentos tecidos por alguns autores e estudiosos do âmbito das ciências sociais, com maior recorte para a filosofia, sociologia, afunilando para autores da área da educação e do serviço social, me dei o prazer de escrever o presente texto onde me atrevo a problematizar alguns fatos e situações que tem acontecido desde um passado considerável, recentemente e de forma recorrente que evidenciam uma daqueles fatores listados anteriormente: o racismo.
Partindo dessa premissa, listo aqui o alto número de mortes de negros realizadas pelo Estado e crime organizado, a questão dos salários mais baixos que são pagos aos negros e principalmente, as mulheres negras e pobres, o fato de que raça quem tem é o negro, o branco não, o perfil dos representantes no congresso nacional e na política partidária de forma geral, como tantos outros que abarrotaria toda uma página. Este não é o intuito da presente escrita.
Seguindo sobre a análise da selvageria racial, refletir sobre o perfi/desenho/foto da corte suprema(STF), de onde parte as decisões sobre o passado, presente e futuro, emergem com impacto direto e indiretamente na vida de toda sociedade. Considerando também a “cultura” das novelas e filmes sem negros, ou se tem, desempenham papeis que lembram e remontam ao racismo.
Refletir ainda sobre o papel da educação nessa conjuntura. Entendendo que a educação pode ser utilizada como ferramenta que perpetua ou age como mecanismo que repudia e enfrenta o racismo, por meio do acesso ou não a um ensino de qualidade e a perpetuação da desigualdade.
Saltou-me aos olhos a Política tributária brasileira, um dos mais ferrenhos e selvagens exemplo do racismo, onde o preto ganha pouco comparado ao branco e a mulher negra ganha menos ainda. O quadro se agrava ainda mais quando se analisa a forma de como está estruturada essa política. Os tributos incidem com mais força sobre salários e consumo – logo a negra e assalariada é a maior vítima e os ricos que mais reclamam dos impostos são os que menos pagam impostos e ainda tem amortização, perdão das grandes dívidas. Um lembrete: a grande maioria dos considerados ricos, são homens e brancos.
No âmbito da política partidária no Brasil, se fizéssemos uma fotografia do legislativo, executivo, judiciário ou do Supremo Tribunal Federal, teríamos uma imagem onde claramente víamos um povo hétero, branco e do sexo masculino, mesmo que a grande maioria da população seja negra e do sexo feminino.
Outros pontos interessante para a atual leitura e que evidenciam de forma quase que brutal a existência do racismo, é quando voltamos nossa análise para aqueles ditos como estando a margem da sociedade, como a população carcerária brasileira: jovem, pobre, negro, da periferia, sem acesso à escola, lazer, esporte, cultura e saneamento básico de qualidade. Esse mesmo perfil descreveria nossa resposta se nos questionarmos sobre quem é o público que moram nas favelas?
Outro fator importante nessa análise da estrutura e conjuntura, na qual tomo a liberdade para classificar o racismo estabelecido nesse meandre, como algo estrutural, ou seja, está na base de tudo e de todo o processo civilizatório, é sobre o perfil do público que está nas faculdades públicas nos cursos ditos como da elite (medicina, direito, engenharias...).
O racismo como mencionado anteriormente está na origem e colabora para perpetuação das condições e situações de vida cotidiana, muitas vezes sem ser questionada, muitas das reproduções quase que mecânicas, que constroem as relações atuais, mas, que segrega, reprime, perpetua o preconceito e mata.
Para uma reflexão rápida sobre o assunto, uso uma das searas mais comuns aos nossos olhos: a religião. Quem são convidados para abrir as cessões solenes nas assembleias legislativas, secretarias de estado, ocasiões festivas, aniversários de entidades, órgãos ou cidades? Quem são os convidados para abrirem o ano letivo nas escolas públicas e particulares? Quem são os convidados para fazerem uso da palavra nas cerimônias de formaturas? A resposta é óbvia a maioria da sociedade, mesmo nós habitando um país laico. Reforçando a indagação, é a senhora do candomblé? É o senhor lá do terreiro, ou o padre e o pastor?
A resposta é óbvia e reprovamos, repudiamos quem pensa ao contrário, mesmo que saibamos que a laicidade é um princípio crucial para a manutenção da democracia e os direitos individuais e coletivos. No entanto, o candomblé e o terreiro são crenças de matriz africanas, como tantas outras manifestações de fé e crença que são refutadas e criminalizadas pelo preconceito advindo de amarrações históricas com o objetivo de marginalizá-las.
Para finalizar nossa breve e superficial leitura sobre a temática inesgotável do racismo, lembremos nós que as pessoas que foram escravizadas por longos anos no Brasil de forma cruel, tais, tão graves e selvagens que a própria palavra escravidão não dá conta da ilustração da dor e do sofrimento, após a abolição foram obrigadas a saírem sem nenhuma condição favorável a manutenção da vida ou segurança, sua ou de sua família: sem roupas, sem bens, sem estudos, sem emprego, sem moradia, seu comida, sem nome, sem saúde, doentes.
E de forma estrutural somos chamados por esses passados imputados a nós, como feios, fedorentos, sujos, incompetentes, preguiçosos, malandros, bandidos, merecedores da morte, entre outros adjetivos. Por um passado sem culpa, usaram a nossa cor da pele para dá nome as coisas ditas como indesejáveis, ruins, tristes, a um grupo social e que hoje reproduzimos de forma consciente ou inconsciente, como “segunda é dia de preto”, “a coisa tá preta”, “ele me denegriu”, “cabelo ruim”, “a coisa escureceu”, “só poderia ser preto”, “preto tem que sofrer”... entre outras atrocidades que são silenciosas e harmônicas para quem as lançam em direções a pessoas ou situações, mas, que ferem e remontam um passado de sofrimento, abusos, maus-tratos, suicídios que insistem em manchar o nosso presente.
O racismo perpetua a desigualdade, aniquila vida de milhares cotidianamente, e elimina possibilidades de melhores condições e qualidade de vida de parte da sociedade. Muitas vezes, sob os aplausos da própria comunidade negra, pobre, desempregada, desassistida e vítima de um sistema, onde se veem protegidas ou pertencentes a um grupo exímio e livre do “sujo ou do errado” por se identificar com um discurso preparado para desapropriar, subalternizar e perpetuar a desigualdade, a miséria, a negligencia, a violência e o racismo, ao passo que reverbera, ascende, matem e revitaliza o grande capital e seus propósitos de lucro e subalternização.
Quanto ao jovem que perdeu a vida, não o conheço, não conheço sua história e vida. Mas, depois de emergir um pouco nas buscas e refletir de como foi e estão sendo construídas as relações, com bases líquidas sob propósitos claros e intecionais cabe a mim, no mínimo defender a vida. Principalmente daqueles que tem em sua construção histórica, a dificuldade, o sofrimento, a falta de oportunidade, o desprezo, a reprovação, o descuido e a negligencia como terreno de crescimento, sob um discurso de que basta querer que consegue.
Gilberto Ferreira
Funcionário público estadual, graduado em Serviço Social pelo Centro Universitário Luterano de Palmas, é Assistente Social do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Comunidade de Palmas-TO, é Residente do programa de Residência em Saúde da Família e Comunidade - Parceria do Ministério da Saúde/prefeitura de Palmas e CEUL/ULBRA e formado em Técnico em Enfermagem