26/08/2014 - 09h49m
Kátia Abreu
Goste-se ou não, Lacerda marcou 4 décadas de nossa polÃtica, sendo que ao menos duas como protagonista
A escassez de lideranças polÃticas no Brasil, evocada com o trágico desaparecimento de Eduardo Campos, remete a uma reflexão sobre nosso passado, em que talvez se encontrem algumas explicações para tal fenômeno.
A verdade é que as grandes lideranças polÃticas nacionais, recentes e remotas, nem sempre desfrutaram em vida do prestÃgio "post mortem". E isso porque a polÃtica, entre nós, foi sempre, com maior ou menor intensidade, uma atividade malvista e difamada.
Nosso primeiro imperador, d. Pedro 1º, abdicou; seu sucessor, d. Pedro 2º, foi deposto e exilado em 24 horas. Nosso primeiro presidente da República, marechal Deodoro da Fonseca, renunciou, e o primeiro presidente eleito, Prudente de Moras, foi vÃtima de uma tentativa de assassinato.
Ruy Barbosa, "o maior dos brasileiros", foi acusado de ter roubado as estantes do Ministério da Fazenda, porque as de sua casa ostentavam as iniciais "RB", que se referiam obviamente à s iniciais de seu nome, mas que os adversários afirmavam significar "República Brasileira", nome que o paÃs jamais teve.
Os exemplos não se esgotam aÃ, mas esses servem como mostruário. Todos os citados tiveram seus méritos reconhecidos pela posteridade, nem sempre pelos contemporâneos. É claro que tal ambiente, que só se agravou, não encoraja o surgimento de novos talentos. As pessoas de bem não querem ser difamadas; as sem escrúpulos não se importam, desde que se mantenham longe dos tribunais --e próximas do poder.
Em abril deste ano, registrou-se o centenário de nascimento de uma das maiores lideranças republicanas --Carlos Lacerda. Sua presença, goste-se ou não, marcou quatro décadas de nossa polÃtica, sendo que pelo menos em duas como protagonista. Tinha ideias e não receava defendê-las, quer na imprensa, como um dos maiores jornalistas que o paÃs já teve, quer no Parlamento, como um dos maiores tribunos que já o integraram.
Tinha talento, coragem e vocação --e pagou caro por isso. Entre seus pecados, não estava o de esconder o jogo. Iniciou-se na vida pública como esquerdista, seguindo a tradição do pai, MaurÃcio de Lacerda, de quem herdou a vocação e a natureza arrojada. Fez parte do PCB, do qual acabou saindo, em meio a acusações recÃprocas. Tornou-se, na sequência, um liberal católico, termo em desuso, já que os católicos que hoje entram na polÃtica o fazem pela porta esquerda da Teologia da Libertação.
Foi peça-chave em dois momentos decisivos da polÃtica brasilei- ra no século passado: no ocaso do governo Vargas, cujo suicÃdio, em agosto de 1954, deu-se duas semanas depois de um atentado a bala que sofreu por parte de integran- tes da Guarda Pessoal da Presidência; e na deposição de João Goulart, em 1964.
O golpe que apoiou acabaria por lhe encerrar abruptamente a carreira. Estava, como lembrou o jornalista Otavio Frias Filho em brilhante ensaio publicado na revista "PiauÃ", prestes a empalmar a Presidência da República, meta para a qual se preparara ao longo de toda a vida.
Mas Presidência é destino. Lacerda, que havia passado com êxito pelo governo do Estado da Guanabara (é reconhecido, até pelos adversários, como um dos melhores administradores que a cidade já teve), tinha todas as credenciais para chegar ao topo --inclusive polÃ- ticas, já que as forças que triunfaram em 1964 o tiveram como lÃder e referência.
Mas seu talento e apetite polÃtico assustavam até os aliados. As eleições presidenciais de 1965, compromisso inicial dos militares, foram canceladas. Lacerda tornou-se novamente oposição. E não hesitou em procurar os antigos adversários --Jango e Juscelino-- para articular uma Frente Ampla contra a ditadura. Foi cassado em 1968, aos 54 anos, preso e banido da vida pública pelo AI-5, proibido até de escrever em jornais.
Abominava o rótulo "paÃs do futuro"; queria cumpri-lo no presente, e a polÃtica era --e é-- a única via. Fica de sua memória esta lição: o Brasil precisa romper o falso paradigma de que polÃtica é sinônimo de podridão, o que só favorece os maus polÃticos --e impede que vocações legÃtimas como a de Lacerda voltem a habitar a vida pública.
KÃTIA ABREU, 52, senadora (PMDB-TO), escreve aos sábados nesta coluna.
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